29 maio 2011

Beleza Interior: Serafins do Rio Uruguai

Músico José Filipowictz, 64 anos, apelidado de Zuze, é o atual campeão,
o Serafim de Alecrim
Foto:Adriana Franciosi
O idoso não apenas tem direito a voz, mas a cantar em Alecrim, cidade gaúcha a 533 quilômetros de Porto Alegre, banhada pelo Rio Uruguai e fronteira com Argentina. O município de 8 mil habitantes criou o festival do idoso, conhecido como Canção Alecrinense.
Em sua terceira edição, é um programa de calouros reservado aos avós, um American Idol dos sexagenários, realizado a cada dois anos, sempre no final de maio, quando a neblina embrulha para presente as residências no inverno. Depois de seletivas nos 14 grupos da terceira idade da cidade, oito finalistas disputam o troféu diante de um ginásio lotado, que ultrapassa 600 espectadores.
– Mostramos que é bonito e divertido envelhecer, há um contingente forte de idosos, a maior parte da população – explica a psicóloga Liane Maria Stein, 28 anos.
O competição mobiliza as 44 comunidades rurais do charmoso lugarejo na fronteira noroeste do Estado. Concorrentes fazem duplas ou treinam interpretações individuais em festas mensais, ansiando pela consagração vocal na aposentadoria.
– Melhor ser descoberto tarde do que nunca. E cantar na velhice é estar próximo dos anjos – raciocina o motorista Telmo Bárbaro, 59 anos, que ainda não tomou coragem de se inscrever no certame e arrisca serenatas em segredo.
O ex-funcionário da Corsan José Filipowictz, 64 anos, apelidado de Zuze, é o atual campeão, o Serafim de Alecrim. Em parceria com Hélio Wilers, venceu o concurso com a canção Água é a Fonte da Vida. Naquele momento, atingiu o ápice de sua trajetória de artista e de assíduo colaborador das rádios da região.
– Meu marido é um passarinho, só que nosso casamento de 42 anos não é uma gaiola – diz Natalina, 64 anos.
E é ouvindo as aves que Zuze aprendeu a voar com a voz, mantendo-se fiel à música sertaneja de raiz, que tematiza os dramas amorosos:
– Ganhar dos colegas foi complicado, mas brabeza é superar a afinação do canarinho, do sabiá e da gralha azul que povoam meu quintal de árvores, às margens do Rio Santo Cristo. A floresta é o principal palco do mundo, um coro de extremo rigor, não aceita qualquer um.
– O pássaro junta inspirações como quem faz um ninho ao peito – poetiza o Pavarotti da viola caipira, que não abre mão das sandálias de pescador e da boina de missioneiro.
Zuze e Natalina moram numa solitária casa encravada no topo de uma mata de eucaliptos, mais próxima do território argentino (seis quilômetros) do que do centro de Alecrim (nove quilômetros). Ele montou um pequeno estúdio no galpão para receber seus amigos. Desde 5h, alterna a potência de seu timbre com a viola e com a gaita. Já ela gira ao seu redor, servindo chimarrão, comentando notícias do radinho de pilha, falando coisas de amor.
– Acordo bochechando melodia – confidencia Zuze.
– Ele interpreta suas composições 10 vezes ao dia, tenho música de sobra para não esquecer tudo o que vivemos juntos – descreve Natalina.
– A canção estica a vida – suspira Zuze.
Alecrim é uma procissão de anjos. Todos da terceira idade. Lá as pessoas não morrem, ficam cantando.