Foi, sem dúvida alguma, um dos piores dias da minha vida. Por nove horas, na última terça-feira, eu e outros 90 turistas estrangeiros viramos reféns de manifestantes, sofremos ameaças, passamos fome e frio e nos defrontamos com a intolerância e o desrespeito aos direitos do próximo, em um episódio que expõe a insegurança e a ausência do Estado na Bolívia do presidente Evo Morales.
– Foi aterrorizante – resumiu um companheiro de infortúnio, o moçambicano Ricardo Pereira, 24 anos, que, com a namorada, a portuguesa Pia Carona, 25 anos, viaja do Uruguai ao México e não pretende voltar tão cedo à Bolívia – possivelmente, jamais retornará.
O drama da terça-feira começou às 14h, no segundo de quatro dias de uma excursão pelo altiplano do sul da Bolívia, cujo ápice seria a visita ao magnífico salar de Uyuni. Em um Toyota Land Cruiser branco da agência de turismo Estrella del Sur, eu e mais cinco turistas havíamos acabado de deixar a lagoa Hedionda – como indica o nome em espanhol, bastante fedorenta, devido ao enxofre –, em cujas margens havíamos almoçado, quando deparamos com um bloqueio de manifestantes na estrada de terra.
Rapidamente, dezenas de metros atrás, outro grupo desceu de uma caminhonete e espalhou pedras pela rodovia, bloqueando o nosso e outros veículos lotados de turistas. Não parecia preocupante. Sabíamos que a região era palco desses bloqueios, mas as agências garantiam que os guias seriam capazes de evitá-los, usando desvios. Além disso, imaginávamos que seríamos liberados com rapidez.
Impotência
Bem, nada disso aconteceu. Depois de muita discussão com os manifestantes, os motoristas dos veículos se deslocaram para Abaroa, lugarejo paupérrimo na fronteira com o Chile. Lá, onde chegamos pouco depois das 15h, deveríamos ficar no máximo 15 minutos, segundo promessa dos sequestradores. Ficamos quase oito horas, em um crescendo de desconforto, impotência e tensão.
Foram retidos 17 Toyotas com turistas, incluindo pelo menos sete brasileiros – dois gaúchos (eu e um amigo, o porto-alegrense Claudio Creitchmann), quatro paranaenses e uma mineira.
Em um ponto da estrada, armados com pedras e paus, mais manifestantes nos aguardavam, e um vigia foi estrategicamente posicionado na capota de cada carro.
Desespero
Em determinado momento, o motorista do Toyota que levava os paranaenses tentou fugir do cerco, usando estrada secundária. Foi perseguido e bloqueado. À distância, pude ver seus ocupantes serem ameaçados com pedras. Um dos passageiros, Diogo dos Reis Ruiz, teria horas mais tarde papel importante no drama.
Alçado à condição de porta-voz improvisado dos reféns, deu uma entrevista em bom espanhol a um jornalista da emissora de TV ATB Canal 11, de Potosí, na qual disse o que todos pensavam: manifestávamos até alguma simpatia pelas reivindicações do grupo que nos sequestrou, mas não tínhamos responsabilidade por seus problemas – pelo contrário, estávamos ajudando o país, ao gastar nossos dólares na Bolívia e promover a imagem do país. Infelizmente, de nada adiantou.
Tensão
Por volta das 19h30min, já com o sol desaparecido e a temperatura em queda rumo a OºC, o drama parecia que ia acabar. A reunião dos manifestantes acabou, os motoristas foram informados de que, após terem pago 50 bolivianos (R$ 12,50) por carro, poderiam ir embora, e sequestradores gritavam “que se vayan”.
Apressadamente, os turistas subiram nos Toyotas para deixar o local. Acabou sendo o momento mais tenso. Uma facção mais radical não aceitou a decisão da maioria e montou uma barreira humana para impedir a saída. Nosso carro foi cercado pela turba. De algum lugar na escuridão, uma pedra foi lançada contra nosso veículo, arrancando um grito de susto da portuguesa Pia – mas sem machucar ninguém. A seguir, passaram a balançar o Toyota, até serem detidos pelos mais moderados. Fomos orientados a dar marcha à ré e voltamos ao ponto de partida.
A maioria, eu inclusive, já acreditava que passaríamos a noite sentados nos carros. O território chileno – as luzes do posto fronteiriço de Oyahue eram vistas à distância – parecia cada vez mais convidativo, mas o frio e os 10 quilômetros de caminhada no escuro tornavam impraticável uma fuga. Acabaram nos liberando, às 23h. Mas a tensão persistiu pelas horas e dias seguintes – atrás de cada curva parecia haver manifestantes prestes a nos sequestrar.